O elo bíblico entre EUA e Israel explica a
ligação entre Washington e Tel-Aviv. A previsível vitória da direita nas
próximas eleições americanas reforça a perspectiva
Inspirados pelo livro do
Êxodo, os protestantes americanos cimentaram paralelos entre a fuga dos judeus
do Egito e a dos puritanos da Inglaterra. Na origem, a fundação da Igreja
Anglicana por Henrique VIII: pretendia casar-se com Ana Bolena, mas o divórcio
lhe era negado pela religião católica. Somente um século depois os puritanos
ingleses, inconformados com a criação forçada de uma igreja que entendiam
herética, partiram para a América do Norte. Em Le Protestantisme
Évangélique Nord-Américain en Mutation(Publisud, 2014, 277 págs., 24 euros), o
professor de história e civilização americana Mokhtar ben Barka, da
Universidade de Valenciennes, contrapõe, talvez pela primeira vez de forma
detalhada, a diferença entre os evangélicos conservadores, eleitores de Jimmy
Carter, Ronald Reagan e George W. Bush, e os evangélicos de esquerda, eleitores
de Barack Obama em 2008. Os primeiros são conservadores teológica e
politicamente. Por sua vez, os evangélicos de esquerda são progressistas do
ponto de vista político, mas conservadores no que toca à teologia. Obama foi o
candidato ideal em 2008, após o fracasso total de W. Bush. Resta saber, porém,
se os evangélicos de esquerda terão algum peso na próxima presidencial nos EUA.
O balanço dos dois mandatos de Obama, deixa claro Ben Barka, é bastante fraco.
CartaCapital: Por que os
Estados Unidos cultivam esse mito de ser um país abençoado por Deus e,
portanto, têm uma ligação com Israel? Além do Brasil, que também é abençoado
por Deus...
Mokhtar ben Barka: Essa
ligação com Israel tem uma explicação teológica, política e estratégica. Para a
direita evangélica, Israel sempre foi considerado como parte do cenário do fim
do mundo.
CC: O Apocalipse?
MBB: Sim. Jesus vai
voltar a Jerusalém. As batalhas do fim dos tempos, e o combate final entre o
bem e o mal, Armagedom, acontecerão lá. A vitória será de Cristo. O que os
evangélicos conservadores não dizem aos judeus é que terão de se converter ao
cristianismo, ou perecerão. No entanto, a própria esquerda israelense se
incumbe de colocar os crentes judeus a par desse importante detalhe. A esquerda
israelense, diga-se, é contra o partido de direita Likud. Ao contrário do Likud
e da direita evangélica, a esquerda evangélica é favorável à paz entre
israelenses e palestinos. Portanto, posiciona-se contra os evangélicos
conservadores. A esquerda israelense tem ligações com a esquerda evangélica.
CC: E qual é o aspecto
estratégico dessa visão de que os Estados Unidos são um país abençoado por
Deus?
MBB: O acesso ao petróleo
no Oriente Médio, especialmente no Iraque e na Arábia Saudita. Após a queda do
Império Otomano no fim da Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha e a França
eram as duas potências dominantes. No entanto, esses países já não tinham os
meios para cuidar da região. Não fossem os EUA, a União Soviética os
substituiria. Os Estados Unidos preencheram o vazio. E o argumento político dos
EUA para apoiar Israel é de que é a única democracia na região.
CC: Mas quando Benjamin
Netanyahu declara Israel Estado Judeu, nos perguntamos se o premier não quer
relegar árabes israelenses, um quarto da população, a cidadãos de segunda
classe.
MBB: Isso é evidente.
Segundo essa lógica, o cidadão árabe israelense se torna de segunda classe.
Essa é uma equação irrefutável e implacável. Árabes israelenses são de fato
excluídos.
CC: Essa medida parece
tão arrogante quanto a crença de que os Estados Unidos são um país escolhido
por Deus?
MBB: É pretensão. Por que
Deus deve abençoar os EUA? Dois: é arrogante dizer “somos abençoados por Deus
e, sendo assim, podemos impor nossos valores”. Isso é chamado de
“excepcionalismo americano”. É errado, é estúpido. O problema dessa crença nos
EUA é sua forte convicção. Remonta ao século XVII, com a chegada dos primeiros
puritanos. Tratava-se de cristãos, perseguidos na Inglaterra, após o nascimento
da Igreja Anglicana. Assim, esses cristãos ao fugir da Inglaterra,
comparavam-se aos hebreus do Êxodo. Por isso os EUA são chamados de “a nação escolhida”.
Assim, os puritanos ingleses estabeleceram paralelos entre eles e os hebreus,
que, em busca da Terra Prometida, atravessaram o Deserto do Sinai quando
expulsos do Egito.
CC: A Bíblia é muito
importante para compreender os Estados Unidos.
MBB: A Bíblia e a
religião têm importância essencial na compreensão e leitura da história dos
EUA. E, desse fundo puritano, nasce a ideia de que a América, por ser uma nação
escolhida, tem o dever de ser modelo para os outros. Ler os discursos de George
W. Bush é como ler os sermões dos primeiros puritanos. Há uma semelhança
extraordinária.
CC: De que forma os
acontecimentos do século XX marcam o país?
MBB: Os EUA são a única
superpotência, após o colapso do comunismo. Eles são a primeira potência
militar, política e econômica. E a história lhes dá razão, porque é preciso não
esquecer: os EUA salvaram o mundo nas duas guerras mundiais. Se eles não
marcassem presença, não sei onde estaríamos. Tudo isso reforçou essa noção de
superioridade, de povo excepcional. Mas será que a China em breve não assumirá
a posição dos EUA?
CC: No seu livro, o
senhor diz que os evangélicos se aproximaram de Israel somente após a Guerra
dos Seis Dias, em 1967. Motivo: foi o ano em que Israel conquistou Jerusalém.
Mas por que apenas em 1967, se levarmos em conta que Israel e a Palestina são
lugares bíblicos?
MBB: Para os evangélicos
americanos, a vitória era sinônimo de cumprir a profecia bíblica sobre a vinda
do Messias. Profecia presente no livro do Apocalipse, no de Daniel, no de Ezequiel,
onde jaz Gog e Magog, a batalha entre as forças do bem e do mal, e a vitória do
bem. Voltamos sempre à Bíblia para dizer que essa vitória confirma a tendência
e o movimento rumo à vitória de Israel contra os árabes. Há sempre essa
transposição bíblica na prática. Trata-se de passos rumo ao fim dos tempos, um
cenário escatológico. A direita conservadora evangélica é pessimista. Vamos
para o fim do mundo, rumo à guerra, à morte. É um cenário sombrio.
CC: A esquerda evangélica
não é sombria.
MBB: De fato, a
perspectiva da esquerda evangélica é otimista. Falam em progresso.
Progressistas devem lutar, é preciso encontrar melhores situações, temos de
ajudar, curar. Jimmy Carter, em seu livro Palestine: Peace Not Apartheid,
quer colocar um fim a esse massacre: israelenses e palestinos precisam chegar a
um acordo. Para os conservadores, o conflito precisa piorar. O fogo deve
devorar tudo. Os conservadores evangélicos detestavam até o
ex-primeiro-ministro Ariel Sharon. Disseram que Deus o havia punido com um AVC
porque ele retirou colonos israelenses da Faixa de Gaza. Para eles, qualquer
resolução vai contra o cenário do fim do mundo.
CC: Barak Obama parece
acreditar na solução de dois Estados, mas não faz nada contra a colonização da
Cisjordânia. Foi diplomaticamente cauteloso por ocasião do recente massacre de
palestinos em Gaza. Por que não reagiu durante as provocadoras visitas de
políticos da legenda direitista Likud na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém?
MBB: O conflito
israelo-palestino é um dos pontos negros da presidência de Obama. No início,
queria agir. Conseguiu fazer Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina,
e Ehud Olmert, então premier israelense, dialogarem. No entanto, um grande
problema para Obama foi a eleição logo após a dele, de Netanyahu, este
determinado a enfrentá-lo. O ódio entre os dois homens causou o fracasso de
Obama. Obama não pode fazer nada, porque o Partido Republicano domina o Senado
e o Congresso. Em termos de política externa, o presidente americano tem mais
poder. Mesmo assim, suas iniciativas são bloqueadas pelos republicanos. A meu
ver, Obama é uma decepção. A política dele para o Oriente Médio é um fracasso
total. E fiquei surpreso após a absolvição de um policial branco em novembro
que matou Michael Brown, um adolescente afro-americano desarmado, em Ferguson,
no Missouri. Obama esteve completamente ausente. Há quem diga: “Não é o papel
do presidente estar presente em cada morte”. Mas existe uma visibilidade
mínima, um mínimo de testemunho.
CC: Por que essa ausência
de Obama?
MBB: Outro ponto fraco
dele é não ser afro-americano ou branco. Isso lhe custou caro. Ele não quis
cair na armadilha de afro-americano de “movimento dos direitos civis”, da
década de 1960. Mas Obama também não é branco. Quando se apresentou candidato
presidencial, os afro-americanos não deram a mínima para ele. Motivo? Não tinha
antepassados escravos. Não pertencia à comunidade negra. É um mestiço. Os
afro-americanos o apoiaram mais tarde. O fato de que ele não fez nada durante o
evento Ferguson e outros mostram que a sua posição é muito frágil.
CC: Mas o senhor diz que
Obama tem as mãos amarradas.
MBB: Além da oposição dos
republicanos, do Tea Party, e de assuntos estratégicos, econômicos e
financeiros, ele lida com o lobby judaico. Nenhum candidato pode fazer campanha
sem um discurso ao Aipac. O Aipac é muito forte financeiramente porque mobiliza
o eleitorado judaico: 80% deles vão às urnas. Além de ter se beneficiado do
dinheiro do lobby judeu, recebeu apoio de Wall Street. Por isso, Obama não foi
capaz de regular Wall Street. O fracasso do Partido Democrata na próxima
eleição presidencial é garantido.
*Reportagem publicada
originalmente na edição 830 de CartaCapital, com o título "Protegidos por
Deus?"