Samuel tinha dois dias de vida ao ser
abandonado numa caixa de sapatos. Na última quinta-feira, ele venceu o The
Voice Brasil
Samuel tinha dois dias de vida
ao ser abandonado dentro de uma caixa de sapatos na porta de uma casa em
Fortaleza. Adotado pelos evangélicos Raquel e Luis Alves, cresceu adubado com
carinho. Em 1993, quando contava apenas quatro anos, os pais resolveram tentar
a vida nos Estados Unidos. Após dez anos, Samuel voltou para o Brasil com a
mãe, e, incentivado por ela, chegou a gravar um disco independente de música
gospel, sem sucesso. Em 2007, regressou aos Estados Unidos, retomando as
esperanças de fazer carreira como cantor.
Na última quinta-feira, já
usando o nome artístico de Sam Alves, Samuel venceu a edição nacional do show
de talentos The Voice Brasil, levada ao ar pela Rede Globo de Televisão, com
quase metade dos 29 milhões de votos dados pelo público em eleição direta,
cantando Hallelujah. Cercado por bailarinos vestidos de branco, transformou o
ceticismo de Leonard Cohen em uma quase canção de exaltação a Deus. Naquele
momento, Sam Alves representava, com seu carisma, sua voz, sua história, uma
das mudanças mais significativas da sociedade brasileira nos últimos cinqüenta
anos, o crescimento vertiginoso da presença da religião no discurso cotidiano.
Pouco antes de Sam Alves se
apresentar no palco, a cantora Claudia Leitte, “técnica” dele, disse que a missão
de seu pupilo era “fazer Deus se revelar através do canto”. Quando ouvidos, os
familiares do cantor, em Fortaleza, não pouparam exortações a Deus em busca de
um escudo para o parente naquela hora de provação, e Sam Alves, ao revelarem
seu nome como o grande vencedor do programa, elevou os olhos aos céus,
murmurando um agradecimento a Deus.
Já na novela Amor à vida,
carro-chefe da teledramaturgia da Rede Globo, a personagem Gina, “moça direita
e pura”, segundo seu perfil oficial, apaixona-se por Elias, freqüentador de uma
igreja pentecostal dirigida por Efigênio, dono de bar convertido em pastor. As
cenas em que aparece o casal, onde predominam a cor branca nas vestes, a
serenidade nos diálogos, a paz nos rostos dos protagonistas, buscam despertar
simpatia no telespectador e construir uma imagem positiva dos evangélicos –
algo impensável há pouquíssimo tempo. Claro, trata-se de uma estratégia da Rede
Globo, menos interessada em religião, e mais em conquistar um público que vem
crescendo exponencialmente, responsável por, em menos de vinte e cinco anos,
posicionar a Rede Record, braço midiático da Igreja Universal do Reino de Deus,
em segundo lugar no ranking de audiência no país.
O Brasil, segundo o censo do
IBGE de 2010, continua predominantemente católico: 65% da população assim se
declara, embora todos saibamos que os números são inflacionados, pois esta
maioria é formada por “não praticantes”, eufemismo onde se enquadram os que
mantêm uma relação apenas pragmática com a religião. Mas o espantoso é constatar
que a comunidade evangélica, que engloba protestantes, pentescostais e
neopentecostais, representa hoje 22% do total da população – lembrando que quem
se manifesta evangélico quase sempre segue os preceitos da confissão à risca.
Em dez anos, esta comunidade cresceu 61%, e de forma preponderante entre os que
são classificados como a Classe C emergente.
A multiplicação do número de
evangélicos – e aqui excetuamos os protestantes históricos, luteranos,
metodistas, presbiterianos, batistas – deve-se basicamente a dois fatores, um
teológico, outro social. Baseados em uma interpretação literal da Bíblia, único
livro reconhecido como repositório de toda a sabedoria necessária para a vida,
os ensinamentos evangélicos, de tão simples, podem ser compreendidos por
qualquer pessoa, independente do grau de instrução. Afinal, oferece-se um
edifício moral sólido, onde não há lugar para especulações metafísicas.
Abraçada pela sensação de
permissividade de um mundo moralmente decadente, e vivendo num país onde o
Estado se omite no cumprimento de suas funções mais básicas (proporcionar
educação, saúde, habitação e segurança de qualidade aos cidadãos), as verdades
absolutas, inquestionáveis, definitivas, pregadas pelos evangélicos, vicejam no
desamparo das camadas mais pobres, sempre avizinhadas da miséria. O duro
cotidiano de pessoas oriundas de famílias destroçadas pelo alcoolismo e pelas
drogas, acuadas pela violência dos traficantes e da polícia corrupta,
vilipendiadas por salários mínimos, humilhadas na solidão de cozinhas, guaritas
e balcões, encontra alívio em igrejas abertas 24 horas por dia. A tristeza, o
medo, a angústia se dissipam no aconchego de uma congregação formada por
iguais, e uma ampla rede social se estende para amparar o novo crente.
O resultado é uma comunidade
fiel e obediente, que alimenta uma máquina que arrecadou em 2011, segundo dados
da Receita Federal, cerca de R$ 20 bilhões, levando em consideração todos os
credos, mera estimativa, já que as igrejas não pagam impostos e a entrada de
divisas ocorre, em geral, por dízimos e doações em espécie, dinheiro cujo
destino é impossível de ser rastreado. Uma comunidade fiel e obediente que
acredita deter a verdade absoluta, e que possui pouca tolerância com quem dela
discorde.
Para manter o proselitismo
religioso, formou-se no Congresso Nacional uma frente suprapartidária
evangélica que reúne 73 parlamentares, com objetivo de rechaçar, de maneira
intransigente, qualquer discussão sobre aborto, união civil entre pessoas do
mesmo sexo e eutanásia, entre outros pontos. Além da defesa de seus interesses
dogmáticos, a bancada, que projeta para as próximas eleições um crescimento de
30%, tem particular devoção pelas concessões de emissoras de comunicação para
difundir a fé – em 2011 as igrejas pentecostais e neopentecostais alugavam 140
horas semanais de programação das cinco principais tevês abertas do Brasil. Ao
mesmo tempo, essa bancada é a que detém mais processos na Justiça Eleitoral e
no Supremo Tribunal Federal, por formação de quadrilha, sonegação de impostos,
abuso do poder econômico, peculato e improbidade administrativa...
Luiz Ruffato é escritor
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